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As (des) medidas ações do governo federal no incentivo ao consumo de crédito no Brasil

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Opinião 52
Opinião 52
Por Gabriel Hamester - Advogado pela OAB/RS, Graduado em Direito e Mestrando em Direito Privado pela PUCRS

Ontem, o Governo Federal através da Lei nº14.131, ampliou o limite da margem consignável da remuneração, dos proventos de pensionistas e soldos militares para 40%, mudanças essas originalmente trazidas pela MP nº 1.006/2020. 

Porém, antes de adentrarmos especificamente neste assunto, é válida a passagem do livro Vida a Crédito (BAUMAN, 2010), que ilustra bem o espírito desse texto:

A dívida contraída tinha de ser (e realmente foi) transformada numa fonte permanente de lucro. Não pode pagar sua dívida? Em primeiro lugar, nem precisa tentar: a ausência de débitos não é o estado ideal. Em segundo lugar, não se preocupe: ao contrário dos emprestadores insensíveis de antigamente, ansiosos para reaver seu dinheiro em prazos pré-fixados e não renováveis, nós, modernos e benevolentes credores, não queremos nosso dinheiro de volta. Longe disso, oferecimentos mais créditos para pagar a velha dívida e ainda ficar com algum dinheiro extra (ou seja, alguma dívida extra) a fim de pagar novas alegrias. Somos os bancos que gostam de dizer “sim”. Seus bancos amigos. Bancos “que sorriem”, como dizia uma de suas mais criativas campanhas publicitárias.

A pandemia causada pela COVID-19 está cada dia aumentando o número de vítimas fatais, segundo dados oficiais, vieram a óbito 3.780 pessoas no último dia 30/03. Paralelo ao drama infindável das pessoas que tiveram suas vidas interrompidas pela doença, e de seus entes queridos que precisam continuar suas vidas, é crescente o número de pessoas desempregadas no País, que chegou ao seu índice histórico de 13,5 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho, e para completar, o número de pessoas endividadas chegou a 66,5% dos brasileiros.

Foi neste contexto que o Governo Federal visando ampliar o acesso ao crédito e ao consumo promulgou a referida lei, aumentando o limite da margem consignável. Todavia a medida na prática traduz o que há muito tempo já se percebe, o Governo não está realmente interessado em dar condições ao consumidor ter efetivamente acesso ao crédito e principalmente, de fazer com que esse consiga honrar suas dívidas e ser um atuante saudável no consumo de crédito. 

A política de consumo é muito mais do que através de um texto, ampliar de forma mínima, um limite que há muito já não é respeitado pelas próprias instituições bancárias, com diversos julgados no TJRS e demais Tribunais do País evidenciando a ilicitude da prática corriqueira de ofertar limites acima do disponível pela legislação. Vejamos como era e como ficou com as alterações trazidas pelo novo dispositivo legal:

O texto original da “Lei do Crédito Consignado” (nº 8.213/91) estabelecia a margem de 30% para operações de crédito bancária como empréstimos, e um adicional de 5%, para auxiliar na quitação de dívidas de cartão de crédito ou utilizar com a finalidade de saque por cartão de crédito.

Aqui vale uma observação. Repare que o texto insurge duas possibilidades em relação aos 5%: na primeira a intenção é positiva, pois visa amortizar a dívida do cartão de crédito, todavia, a segunda finalidade é facilmente identificada como um caminho sem volta para o consumidor brasileiro, que muitas vezes não possui uma educação financeira de qualidade e em pesquisa realizada pelo SPC Brasil, 46% dos brasileiros não controlam seu orçamento. Uma vez que o consumidor utilizar a margem de 5% para sacar um valor por cartão de crédito, estamos falando de juros que chegam a 329,3% ao ano. Imagine que uma pessoa realizou o saque de mil reais, e que em decorrência de diversos fatores não conseguir pagar (e essa parte a lei não diz), o consumidor terá uma dívida de praticamente 10x mais do que o valor retirado. 

A nova Lei abriu a possibilidade de até 31 de dezembro de 2021, o percentual de utilização do valor da remuneração, benefício ou soldo, seja de 40%, ou seja, na prática os 5% do cartão de crédito anteriormente mencionados continuam ampliando a margem de 30% para 35% relativos aos negócios bancários realizados junto as instituições de crédito e banco. Veja que a lei trás a palavra soldo, dessa forma, ampliou também para a categoria dos Militares e seus dependentes a possibilidade de utilização da margem nos termos da Lei.

A intenção da legislação é boa, porém a complexidade do consumo ao crédito no Brasil há muito tempo precisa ser revista e da mesma forma regulamentada, através de Leis efetivas, que não somente concedam ampliações de possibilidades, mas que realizem o tratamento da matéria. 

Nesse sentido, estamos desde 2012 com o projeto de Lei do Superendividamento (PL 3.515/15) tramitando na casa legislativa, que visa justamente tratar desse que é um dos principais problemas para a sociedade brasileira: o mercado de crédito e seus efeitos no consumidor, mas que até o presente momento não foi colocado em pauta para votação.

O Poder Judiciário e os juristas do Brasil inteiro, em especial a Professora Cláudia Lima Marques, apontam há muito para essa questão, que parece não ser tão importante aos olhos de nossos eleitos. A prevenção e o tratamento do endividamento passa por diversos setores, dentre eles os Bancos e sua estrutura, suas práticas de fornecimento de crédito, que como vimos na obra supracitada, sorriem como amigos.

Somente ampliar a possibilidade de obtenção de crédito não sustenta uma economia a longo prazo, pelo contrário, faz com que consumidores muitas vezes deficitários do mínimo existencial recorram às modalidades que estiverem disponíveis para conseguir manter seu status digno – leia-se aqui, o mínimo necessário para se viver (moradia, alimentação, medicamentos, etc..), mesmo que isso importem em sua ruína financeira e existencial, tendo em vista que hoje vivemos em uma sociedade de que o ter é mais importante do que o ser.

Para as instituições financeiras a medida é muito boa e para consumidores desavisados também, a falsa sensação de poder econômico não se traduz em efetivo poder de compra. O consumo consciente deve ser exercício diário, ainda mais em tempos de pandemia, onde produtos primários como o feijão e óleo ultrapassam valores razoáveis, realizar empréstimos bancários que irão interferir na vida dos consumidores por períodos consideráveis, haja vista que o número de parcelas facilmente ultrapassa cinco anos devem ser muito bem planejados.

PROCON RS