Da Responsabilidade pelos Vícios do Produto ou Serviço no CDC ao conceito de Conformidade no ordenamento europeu do consumidor
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O Código de Defesa do Consumidor que a lume veio a 11 de Setembro de 1990 no Brasil, em obediência estrita aos comandos da Constituição-Cidadã, consagrou nos artigos de 18 a 24 a “responsabilidade por vício do produto e serviço”.
Tradicionalmente, como, de resto, ainda se plasma, entre nós, no Código Civil de 1966, a disciplina, ínsita na mancha da compra e venda, versa sobre a “venda de coisas defeituosas”. E aí se condensam as regras susceptíveis de acudir a hipóteses em que a coisa padece “de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou da ausência “das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do [almejado] fim”.
E a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, na esteira, aliás, da doutrina a propósito segregada, de modo escorreito e são alinhavava destarte os remédios para hipóteses do jaez das enunciadas:
“Nos termos do art.º 913.º do Código Civil, verificado o defeito na coisa vendida, tem o comprador direito
(i) à anulação do contrato por erro ou dolo (art.º 905.º do CC); ou
(ii) à redução do preço quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem dolo ou erro, o comprador teria igualmente adquirido o bem, mas por um preço inferior (art.º 911.º do CC); ou
(iii) indemnização pelo interesse contratual negativo cumulável com as duas primeiras opções; ou
(iv) direito a exigir do vendedor a reparação da coisa ou a sua substituição (art.º 914.º do CC).”
No que ao Brasil importa, o artigo 18 do CDC consagra “expressis verbis”:
“Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.”
E, numa adequação a uma sociedade de consumo em franca expansão, no seu artigo 20, análoga disciplina no que tange aos serviços encerra o CDC:
“O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;
II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III - o abatimento proporcional do preço.”
A Directiva 1999/44, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, sob a epígrafe “certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ‘ela’ relativas, consagra pela vez primeira “intra muros” o conceito de conformidade, no seu artigo 2.º, abrogando os mais de “vício, defeito ou avaria”.
Crê-se que terá importado o conceito da “Convenção de Viena de 1980 sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional de Mercadorias”, já que nela se plasma com evidência.
E na Directiva de 25 de Maio de 1999 se estatui:
“Conformidade com o contrato
1. O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.
2. Presume-se que os bens de consumo são conformes com o contrato, se:
a) Forem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor e possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Forem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceite;
c) Forem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
3. Não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.
4. O vendedor não fica vinculado pelas declarações públicas a que se refere a alínea d) do n.º 2, se:
- demonstrar que não tinha conhecimento nem podia razoavelmente ter conhecimento da declaração em causa,
- demonstrar que, até ao momento da celebração do contrato, a declaração em causa fora corrigida, ou
- demonstrar que a decisão de comprar o bem de consumo não poderia ter sido influenciada pela declaração em causa.
5. Presume-se que a falta de conformidade resultante de má instalação do bem de consumo é equiparada a uma falta de conformidade do bem quando a instalação fizer parte do contrato de compra e venda e tiver sido efectuada pelo vendedor, ou sob sua responsabilidade, ou quando o produto, que se prevê seja instalado pelo consumidor, for instalado pelo consumidor e a má instalação se dever a incorrecções existentes nas instruções de montagem.”
E, nos seus consideranda, a directiva sob judice adverte:
- “os bens devem, antes de mais, ser conformes às cláusulas contratuais;
- que o princípio de conformidade com o contrato pode ser considerado como uma base comum às diferentes tradições jurídicas nacionais;
- que em determinadas tradições jurídicas nacionais nem sempre é possível confiar unicamente neste princípio para garantir aos consumidores um nível mínimo de protecção;
- que, especialmente nessas tradições jurídicas, podem ser úteis disposições nacionais suplementares destinadas a garantir a protecção dos consumidores nos casos em que as partes não acordaram em cláusulas contratuais específicas ou em que as partes acordaram em cláusulas ou firmaram acordos que directa ou indirectamente anulam ou restringem os direitos dos consumidores e que, na medida em que esses direitos resultem da presente directiva, não são vinculativos para os consumidores…”
A doutrina passou a traçar o conceito:
“ A conformidade da coisa traduz-se na obrigação de o fornecedor respeitar escrupulosamente os termos do contrato, a saber, de proceder à entrega da coisa de acordo com o que no contrato se estipula…”
A não conformidade traduz-se na diferença entre o bem que deveria ser entregue e o bem a cuja entrega o fornecedor procedeu.
E, de harmonia com um opúsculo, ao tempo editado pela Direcção-Geral do Consumidor dependente do Ministério da Economia (os direitos do consumidor são, em Portugal, como na Europa, aliás, direitos fundamentais, mas jamais esteve a sua tutela no Ministério da Justiça, antes no da Qualidade de Vida, no do Ambiente e Recursos Naturais, no Ministro-Adjunto do Primeiro-Ministro, no da Economia e Inovação, no da Economia e do Mar… que sabemos nós!), existe não conformidade nas seguintes situações:
- Vício ou defeito da coisa
- Ausência de qualidade do bem
- Diferença de identidade
- Diferença de quantidade
E os exemplos sucedem-se:
- Vício ou defeito da coisa: “a tampa […] do celular não fecha ou não funciona qualquer das suas teclas; a bateria do computador pessoal não assegura a carga plena”
- Ausência de qualidade do bem: “o relógio anti-choque quebrou à primeira queda”
- Diferença de identidade: “em vez do leitor MP4 contratado, a entrega é de um leitor MP3 ou de marca distinta”
- Diferença de quantidade: “ em vez dos 2 Kg de batatas adquiridos, o fornecedor só dispensa um”.
A Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho de Ministros de que se trata e a sua transposição para o ordenamento jurídico interno (Portugal deveria ter transposto o aludido instrumento normativo europeu de molde a que o seu começo de vigência coincidisse com o que imperativamente nele se estabelecera: 1.º de Janeiro de 2002; porém, porque Estado-membro relapso e contumaz, incumpridor useiro e vezeiro, em detrimento dos direitos que aos consumidores seria lícito reclamar, só a 08 de Abril de 2003 o fez: um ano três meses e oito dias após o que legislado fora em Bruxelas ou Estrasburgo) veio a consagrar a conformidade e o seu oposto.
Com efeito, o artigo 2.º do diploma de transposição – o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril - conceitua e define conformidade como segue:
“1 - O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.
2 - Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
3 - Não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.
4 - A falta de conformidade resultante de má instalação do bem de consumo é equiparada a uma falta de conformidade do bem, quando a instalação fizer parte do contrato de compra e venda e tiver sido efectuada pelo vendedor, ou sob sua responsabilidade, ou quando o produto, que se prevê que seja instalado pelo consumidor, for instalado pelo consumidor e a má instalação se dever a incorrecções existentes nas instruções de montagem.”
Por conseguinte, a conformidade, na óptica da directiva e do ordenamento pátrio, reveste um sem-número de manifestações típicas, a saber:
- Correspondência da coisa à descrição dela feita pelo fornecedor ou às qualidades apresentadas como amostra ou modelo;
- Adequação da coisa ao uso específico a que se destina e que o consumidor haja declinado à contraparte, aceitando-o, aquando da celebração do contrato;
- Adequação da coisa ao uso habitualmente dado a espécimes do mesmo tipo;
- Apresentação de qualidades e desempenho habituais, razoavelmente espectáveis, de espécimes do mesmo tipo, ante a natureza e, eventualmente, as declarações públicas do produtor, distribuidor e fornecedor acerca das suas características concretas, nomeadamente num qualquer meio de comunicação comercial;
- Deficiente instalação da coisa a cargo do fornecedor ou sob sua factual e técnica supervisão.
E os exemplos avultam em ordem à subsunção de qualquer das hipóteses precedentemente recortadas:
- Correspondência da coisa à descrição feita pelo fornecedor ou às qualidades apresentadas como amostra ou modelo: o veículo não traz o pneu de socorro descrito no catálogo da marca, antes um “kit anti-furo”, como algo de supletivo;
- Adequação da coisa ao uso específico a que se destina e que o consumidor haja declinado à contraparte, aceitando-o, aquando da celebração do contrato: veículo adaptado para deficientes não se adequa à função;
- Adequação da coisa ao uso habitualmente dado a espécimes do mesmo tipo: veículo todo-o-terreno sem tracção às quatro rodas, sem reforço, com um comportamento típico de veículo de cidade;
- Apresentação de qualidades e desempenho habituais, razoavelmente espectáveis, de espécimes do mesmo tipo, ante a natureza e, eventualmente, as declarações públicas do produtor, distribuidor e fornecedor acerca das características concretas, nomeadamente num qualquer meio de comunicação comercial: veículo híbrido com consumo anunciado de 3,8 l/100, quando o consumo real é de 8l/100 [na Europa, o consumo “mede-se”, ao contrário do que sucede no Brasil, pelo número de litros consumidos por cada 100 Km. de circulação, daí o quadro apresentado].
- Deficiente instalação da coisa pelo próprio fornecedor ou sob sua factual supervisão: instalação do motor no veículo com manifesto desrespeito pelas “leges artis”.
A Directiva (EU) n.º 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio, que revoga a Directiva 1999/44, de 25 de Maio de 1999, porém, evolui no conceito e entende inscrevê-lo numa noção dicotómica:
- A conformidade subjectiva e
- A conformidade objectiva.
Com efeito, a destrinça consta tanto dos consideranda como do articulado de um tal instrumento normativo.
Alinhemos quanto sobressai dos consideranda:
- A conformidade da coisa com o contrato: critérios subjectivos e objectivos
“A fim de proporcionar clareza quanto ao que um consumidor pode esperar dos bens e à responsabilidade do vendedor na eventualidade de falhar a entrega do que é esperado, é essencial harmonizar plenamente as regras para determinar a conformidade dos bens. Todas as referências a conformidade na presente directiva deverão referir-se à conformidade dos bens com o contrato de compra e venda. A fim de salvaguardar os interesses legítimos de ambas as partes de um contrato de compra e venda, a conformidade deverá ser avaliada com base em critérios subjectivos e objectivos.”
- Especificações
“Por conseguinte, os bens deverão cumprir os requisitos que foram acordados no contrato entre o vendedor e o consumidor. Esses requisitos podem incluir, nomeadamente, a quantidade, a qualidade, o tipo e a descrição dos bens, a sua adequação a uma finalidade específica, bem como a entrega dos bens com os acessórios acordados e quaisquer instruções. Os requisitos estabelecidos no contrato de compra e venda deverão incluir os que resultem da informação pré-contratual que, nos termos da Directiva 2011/83/UE, é parte integrante do contrato.”
- Os conceitos de funcionalidade e interoperabilidade
“O conceito de funcionalidade deverá entender-se por referência ao modo como os bens podem desempenhar as suas funções, tendo em conta a sua finalidade. O conceito de interoperabilidade respeita a se, e em que medida, os bens são capazes de funcionar com hardware ou software diferentes dos que normalmente são usados com bens do mesmo tipo. O bom funcionamento incluirá, por exemplo, a capacidade dos bens para trocarem informações com outro software ou hardware e para utilizarem as informações trocadas.
- Conteúdos e serviços digitais interligados
“Uma vez que os conteúdos e serviços digitais incorporados ou interligados com os bens estão em constante evolução, os vendedores podem acordar com os consumidores o fornecimento de actualizações relativas a esses bens. As actualizações, tal como acordadas no contrato de compra e venda, podem melhorar e elevar o nível dos elementos de conteúdos ou serviços digitais dos bens, alargar as suas funcionalidades, adaptá-los à evolução técnica, protegê-los de novas ameaças à segurança, ou servir outros fins. Por conseguinte, a conformidade dos conteúdos ou serviços digitais incorporados ou interligados com os bens deverá também ser avaliada em relação à actualização dos elementos de conteúdos ou serviços digitais destes bens de acordo com o estipulado no contrato de compra e venda. A não disponibilização de actualizações que tenham sido acordadas no contrato de compra e venda deverá ser considerada uma falta de conformidade dos bens. Além disso, as actualizações defeituosas ou incompletas deverão também ser consideradas uma falta de conformidade dos bens, visto que tal significaria que essas actualizações não são executadas de acordo com o estipulado no contrato de compra e venda.”
- Requisitos subjectivos e objectivos de conformidade
“Para que estejam em conformidade, os bens deverão não só preencher os requisitos subjectivos de conformidade, mas também os requisitos objectivos de conformidade estabelecidos pela presente directiva.
A conformidade deverá ser avaliada, considerando, nomeadamente, a finalidade para a qual os bens do mesmo tipo seriam normalmente utilizados, se os bens são fornecidos com os acessórios e as instruções que o consumidor possa razoavelmente esperar receber, ou se correspondem à amostra ou ao modelo que o vendedor disponibilizou ao consumidor.
Os bens deverão também possuir as qualidades e características habituais nos bens do mesmo tipo e que os consumidores podem razoavelmente esperar, dada a natureza dos bens, e tendo em conta qualquer declaração pública feita pelo vendedor ou em nome deste ou por outras pessoas em fases anteriores da cadeia de transacções.
- Actualizações acordadas no contrato, nomeadamente de segurança
“Além das actualizações acordadas no contrato, o vendedor deverá também fornecer actualizações, incluindo actualizações de segurança, a fim de garantir que os bens com elementos digitais continuam a estar em conformidade.
A obrigação do vendedor deverá ser limitada às actualizações necessárias para que esses bens se mantenham em conformidade com os requisitos objectivos e subjectivos de conformidade definidos na presente directiva. Salvo disposição contratual em contrário, o vendedor não deverá ser obrigado a fornecer versões actualizadas dos conteúdos ou serviços digitais dos bens, nem a melhorar ou alargar as funcionalidades dos bens para além dos requisitos de conformidade. Se uma actualização fornecida pelo vendedor ou por um terceiro que forneça os conteúdos digitais ou os serviços digitais nos termos do contrato de compra e venda causar uma falta de conformidade dos bens com elementos digitais, o vendedor deverá ser responsável por restabelecer a conformidade dos bens.”
- A faculdade de instalar ou não as actualizações de banda do consumidor
O consumidor deverá continuar a ser livre de instalar as actualizações fornecidas. No entanto, caso decida não instalar as actualizações necessárias para manter a conformidade dos bens com elementos digitais, o consumidor não deverá esperar que esses bens continuem a estar em conformidade. O vendedor deverá informar o consumidor de que a sua decisão de renunciar à instalação de actualizações necessárias para manter a conformidade dos bens com elementos digitais, incluindo actualizações de segurança, terá um impacto na responsabilidade contratual do vendedor no que diz respeito às características dos bens com elementos digitais cujas actualizações em causa são necessárias para manter em conformidade.
A presente directiva não deverá afectar as obrigações de fornecimento de actualizações de segurança previstas no direito nacional ou da União.
- Conformidade dos bens com elementos digitais
Em princípio, no caso de bens com elementos digitais em que o conteúdo ou serviço digital incorporado ou interligado com os bens é fornecido através de um ato único de fornecimento, o vendedor só é responsável por uma falta de conformidade que se verifique no momento da entrega.
No entanto, a obrigação de fornecer actualizações deverá atender ao facto de que o ambiente digital de um bem desta natureza muda constantemente. Por conseguinte, as actualizações são um instrumento necessário para assegurar que os bens funcionam da mesma forma que no momento da entrega. Além disso, ao contrário dos bens tradicionais, os bens com elementos digitais não estão completamente separados da esfera do vendedor, uma vez que este, ou um terceiro que forneça os conteúdos ou serviços digitais nos termos do contrato de compra e venda, pode actualizar os bens à distância, normalmente através da Internet.
Assim sendo, se o conteúdo ou serviço digital for fornecido através de um acto único de fornecimento, o vendedor deverá ser responsável por disponibilizar as actualizações necessárias para manter os bens com elementos digitais em conformidade durante um período em que o consumidor pode razoavelmente esperar, mesmo que os bens estivessem em conformidade no momento da entrega.
O período em que o consumidor pode razoavelmente esperar receber actualizações deverá ser avaliado com base no tipo e na finalidade dos bens e dos elementos digitais e tendo em conta as circunstâncias e a natureza do contrato de compra e venda. Normalmente, o consumidor esperaria receber actualizações pelo menos durante o período em que o vendedor é responsável pela falta de conformidade, ao passo que, em alguns casos, as expectativas razoáveis do consumidor podem prolongar-se para além desse período, o que sucede, nomeadamente, no caso das actualizações de segurança. Noutros casos, designadamente no que diz respeito aos bens com elementos digitais cuja finalidade seja limitada no tempo, a obrigação de fornecer actualizações limita-se normalmente a esse período.”
- Durabilidade dos bens como elemento objectivo da conformidade
“Assegurar uma maior durabilidade dos bens é importante para se alcançarem padrões de consumo mais sustentáveis e uma economia circular. De igual modo, manter produtos não conformes fora do mercado da União, reforçando a vigilância do mercado e proporcionando os incentivos adequados aos operadores económicos, é essencial para aumentar a confiança no funcionamento do mercado interno. Para esse efeito, uma legislação específica da União relativa a produtos é a abordagem mais adequada para introduzir requisitos de durabilidade e outros requisitos relacionados com produtos em relação a determinados tipos ou grupos de produtos, utilizando para este fim critérios adaptados.
Por conseguinte, a presente directiva deverá ser complementar dos objectivos prosseguidos nessa legislação específica da União relativa a produtos, e deverá incluir a durabilidade como critério objectivo para a avaliação da conformidade dos bens.
Na presente directiva, a durabilidade deverá referir-se à capacidade de os bens manterem as suas funções e desempenho previstas através da utilização normal.
Para que os bens estejam em conformidade, deverão possuir a durabilidade que é normal para bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar dada a natureza dos bens, incluindo a eventual necessidade de manutenção razoável dos bens, como a inspecção periódica ou a mudança de filtros de um automóvel, e tendo em conta qualquer declaração pública feita por qualquer pessoa que faça parte da cadeia de transacções ou em seu nome.
A avaliação deverá também ter em conta todas as outras circunstâncias pertinentes, tais como o preço dos bens e a intensidade ou a frequência da utilização que o consumidor faz dos bens.
Além disso, na medida em que as informações específicas sobre a durabilidade estiverem indicadas em qualquer declaração pré-contratual que faça parte do contrato de compra e venda, o consumidor deverá poder basear-se nelas como parte dos requisitos subjectivos de conformidade.”
Nova Directiva de 20 de Maio de 2019
[20019/771]
Os requisitos subjectivos de conformidade
A Directiva sob análise recorta a conformidade subjectiva [artigo 6.º], após definir o princípio-regra, a saber, a obrigação geral de conformidade a que o vendedor se adscreve, no artigo 5.º:
Requisitos subjectivos de conformidade
A fim de se encontrarem em conformidade com o contrato de compra e venda, os bens devem, em especial e sendo caso disso:
- Corresponder à descrição, ao tipo, à quantidade e à qualidade e ter a funcionalidade, a compatibilidade, a interoperabilidade e as demais características, tal como exigidas pelo contrato de compra e venda;
- Ser adequados a qualquer finalidade específica para a qual o consumidor os destine e que tenha sido comunicada ao vendedor o mais tardar no momento da celebração do contrato e relativamente à qual o operador tenha manifestado concordância;
- Ser entregues juntamente com todos os acessórios e instruções, inclusivamente de instalação, tal como estipulado no contrato de compra e venda; e
- Ser fornecidos com todas as actualizações, tal como estipulado no contrato de compra e venda.
Requisitos objectivos de conformidade
E, no artigo 7.º se desfiam os requisitos objectivos de conformidade, como segue:
1. Além de cumprirem todos os requisitos objectivos de conformidade[ou subjectivos(?) porque os objectivos são, afinal, os que a seguir se enunciam], os bens devem:
a) Ser adequados às utilizações a que os bens do mesmo tipo normalmente se destinam, tendo em conta, sendo caso disso, o direito da União e os direitos nacionais aplicáve[is], as normas técnicas, ou, na falta de tais normas técnicas, os códigos de conduta específicos do sector que forem aplicáveis;
b) Se aplicável, possuir a qualidade e corresponder à descrição de uma amostra ou modelo que o vendedor tenha disponibilizado ao consumidor antes da celebração do contrato;
c) Sendo caso disso, ser entregues juntamente com os acessórios, incluindo a embalagem, instruções de instalação ou outras instruções que o consumidor possa razoavelmente esperar receber; e
d) Corresponder à quantidade e possuir as qualidades e outras características, inclusive no que respeita à durabilidade, funcionalidade, compatibilidade e segurança, que são habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor possa razoavelmente esperar, dada a natureza dos bens e tendo em conta qualquer declaração pública feita pelo vendedor ou em nome deste ou por outras pessoas em fases anteriores da cadeia de transacções, incluindo o produtor, particularmente através de publicidade ou de rotulagem.
2. O vendedor não fica vinculado pelas declarações públicas a que se refere o n.º 1, alínea d), se demonstrar que:
a) Não tinha, nem podia razoavelmente ter, conhecimento da declaração pública em causa;
b) No momento da celebração do contrato, a declaração pública em causa tinha sido corrigida de forma igual ou comparável à forma por que tinha sido feita; ou
c) A decisão de comprar os bens não poderia ter sido influenciada pela declaração pública.
3. No caso dos bens com elementos digitais, o vendedor deve assegurar que o consumidor seja informado sobre as actualizações e que estas lhe sejam fornecidas, incluindo actualizações de segurança, que sejam necessárias para colocar tais bens em conformidade, durante o período:
a) Em que o consumidor pode razoavelmente esperar, dado o tipo e finalidade dos bens e dos elementos digitais, e tendo em consideração as circunstâncias e natureza do contrato, caso o contrato de compra e venda estipule um único fornecimento do conteúdo ou serviço digital; ou
b) Indicado no artigo 10.º , n.º 2 ou n.º 5, consoante aplicável, sempre que o contrato de compra e venda estipule o fornecimento contínuo do conteúdo ou serviço digital durante um determinado período.
4. Se o consumidor não proceder à instalação, num prazo razoável, das actualizações fornecidas nos termos do n.º 3, o vendedor não é responsável por qualquer falta de conformidade resultante unicamente da falta de actualização em causa, desde que:
a) O vendedor tenha informado o consumidor sobre a disponibilidade da actualização e as consequências da sua não instalação; e
b) A não instalação ou a instalação incorrecta da actualização pelo consumidor não se tenha ficado a dever a deficiências nas instruções de instalação fornecidas ao consumidor.
5. Não se verifica falta de conformidade na acepção do n.º 1 ou do n.º 3 se, no momento da celebração do contrato, o consumidor tiver sido especificamente informado de que uma característica particular dos bens se desviava dos requisitos objectivos de conformidade estabelecidos no n.º 1 ou no n.º 3 e o consumidor tiver expressa e separadamente aceitado esse desvio aquando da celebração do contrato de compra e venda.
Extensão do conceito de conformidade objectiva: a incorrecta instalação dos bens
No que tange a uma incorrecta instalação dos bens, as regras aplicáveis perflam-se como segue:
“Artigo 8.º
Instalação incorrecta dos bens
Qualquer falta de conformidade resultante da instalação incorrecta dos bens é considerada uma falta de conformidade desses bens se:
a) A instalação fizer parte do contrato de compra e venda e tiver sido realizada pelo vendedor ou sob a sua responsabilidade; ou
b) A instalação, destinada a ser realizada pelo consumidor, tiver sido realizada por este e a instalação incorrecta se ficar a dever a deficiências nas instruções de instalação fornecidas pelo vendedor ou, no caso de bens com elementos digitais, pelo vendedor ou pelo fornecedor do conteúdo ou serviço digital.”
O DIPLOMA LEGAL DA GARANTIA DOS BENS DE CONSUMO
ORA VIGENTE EM PORTUGAL
A transposição pelo legislador pátrio da Directiva [2019/771] das garantias dos contratos de consumo, operada em 18 de Outubro do ano transacto pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, contempla nos artigos 6.º, 7.º e 8,º os requisitos subjectivos, objectivos e complementares de conformidade.
E perfilam-se tais dispositivos como segue:
Requisitos subjectivos de conformidade
(artigo 6.º)
São conformes com o contrato de compra e venda os bens que:
- Correspondem à descrição, ao tipo, à quantidade e à qualidade e detêm a funcionalidade, a compatibilidade, a interoperabilidade e as demais características previstas no contrato de compra e venda;
- São adequados a qualquer finalidade específica a que o consumidor os destine, de acordo com o previamente acordado entre as partes;
- São entregues juntamente com todos os acessórios e instruções, inclusivamente de instalação, tal como estipulado no contrato de compra e venda; e
- São fornecidos com todas as actualizações, tal como estipulado no contrato de compra e venda.
Requisitos objectivos de conformidade
(artigo 7.º)
(1) Para além dos requisitos previstos no artigo anterior, os bens devem:
- Ser adequados ao uso a que os bens da mesma natureza se destinam;
- Corresponder à descrição e possuir as qualidades da amostra ou modelo que o [fornecedor] tenha apresentado ao consumidor antes da celebração do contrato, sempre que aplicável;
- Ser entregues juntamente com os acessórios, incluindo a embalagem, instruções de instalação ou outras instruções que o consumidor possa razoavelmente esperar receber, sempre que aplicável; e
- Corresponder à quantidade e possuir as qualidades e outras características, inclusive no que respeita à durabilidade, funcionalidade, compatibilidade e segurança, habituais e expectáveis nos bens do mesmo tipo considerando, designadamente, a sua natureza e qualquer declaração pública feita pelo profissional, ou em nome deste, ou por outras pessoas em fases anteriores da cadeia de negócio, incluindo o produtor, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
(2) O [fornecedor] não fica vinculado às declarações públicas [atinentes à hipótese do antecedente prevista, a saber, o corresponder à quantidade e possuir as qualidades e outras características, inclusive no que respeita à durabilidade, funcionalidade, compatibilidade e segurança, habituais e expectáveis nos bens do mesmo tipo considerando, designadamente, a sua natureza e qualquer declaração pública feita pelo profissional] se demonstrar que:
- Não tinha, nem podia razoavelmente ter, conhecimento da declaração pública em causa;
- No momento da celebração do contrato, a declaração pública em causa tinha sido corrigida de forma igual ou comparável à forma por que tinha sido feita; ou
- A decisão de contratar não poderia ter sido influenciada por aquela declaração.
(3) Não se verifica falta de conformidade quando, no momento da celebração do contrato, o consumidor tenha sido inequivocamente informado de que uma característica particular do bem se desviava dos requisitos estabelecidos [em (1)] e tenha aceitado, separadamente, de forma expressa e inequívoca, esse desvio.
(4) Salvo acordo em contrário das partes, os bens devem ser entregues na versão mais recente à data da celebração do contrato.
Requisitos adicionais de conformidade dos bens com elementos digitais
(Artigo 8.º)
(1) Para além dos requisitos de conformidade constantes dos artigos 6.º e 7.º, o [fornecedor] deve assegurar que as actualizações, incluindo as de segurança, necessárias para colocar os bens em conformidade, são comunicadas e fornecidas ao consumidor, durante o período razoavelmente esperado pelo consumidor, tendo em conta o tipo e finalidade dos bens e dos elementos digitais, bem como as circunstâncias e natureza do contrato de compra e venda, sempre que o mesmo estipule um único ato de fornecimento do conteúdo ou serviço digital.
(2) No caso do fornecimento contínuo de conteúdo ou serviço digital até dois anos, o dever de comunicação e fornecimento das actualizações mencionado no número anterior vigora pelo período de dois anos.
(3) No caso do fornecimento contínuo de conteúdo ou serviço digital superior a dois anos, o dever de comunicação e fornecimento das actualizações mencionado [em (1)] vigora pelo período de duração do contrato.
(4) Se o consumidor não proceder à instalação, num prazo razoável, das actualizações fornecidas nos termos de (1), o profissional não é responsável por qualquer falta de conformidade que resulte exclusivamente da falta de actualização em causa, desde que:
a) O profissional tenha informado o consumidor da disponibilidade da actualização e das consequências da sua não instalação; e
b) A não instalação ou a instalação incorrecta da actualização pelo consumidor não tenha resultado de deficiências nas instruções de instalação fornecidas ao consumidor.
(5) Não se verifica falta de conformidade quando, no momento da celebração do contrato, o consumidor tenha sido inequivocamente informado de que uma característica particular do bem se desviava dos requisitos constantes de (1) do artigo anterior ou dos requisitos objectivos de actualização do presente artigo, e tenha aceitado, separadamente, de forma expressa e inequívoca, esse desvio.
Instalação incorrecta dos bens
(Artigo 9.º)
Considera-se existir falta de conformidade dos bens sempre que a mesma resulte de instalação incorrecta, desde que:
a) A instalação seja assegurada pelo profissional ou efectuada sob a sua responsabilidade; ou
b) Quando realizada pelo consumidor:
i) A instalação incorrecta se deva a deficiências nas instruções de instalação fornecidas pelo[fornecedor]; ou
ii) No caso de bens com elementos digitais, a instalação incorrecta se deva a deficiências nas instruções de instalação fornecidas pelo produtor ou pelo fornecedor do conteúdo ou serviço digital.”
EM SUMA,
- No quadro do direito vigente, opera-se uma evolução compaginável com os tempos, tendo-se abandonado, em parte, os conceitos plasmados na Directiva de 25 de Maio de 1999, do Parlamento Europeu e do Conselho de Ministros da Comunidade Europeia.
- De par com a obrigação geral de conformidade que avulta nos contratos de consumo, maxime, do de compra e venda (e dos mais que a tal disciplina se subordinam), destacam-se agora não só os requisitos subjectivos de conformidade, como os objectivos, como ainda os adicionais nos bens com conteúdos digitais e os que se lhes associam em consequência de uma incorrecta instalação das coisas.
- Requisitos subjectivos são os inerentes a:
3.1. A descrição, o tipo, a quantidade e a qualidade e detêm a funcionalidade, a compatibilidade, a interoperabilidade e as demais características ínsitas no conteúdo do contrato;
3.2. Qualquer finalidade específica a que o consumidor a destine, de acordo com o contrato;
3.3. Entrega simultânea da coisa com todos os acessórios e instruções, inclusivamente de instalação, tal como estipulado no contrato; e
3.4. Ao fornecimento com todas as actualizações, tal como estipulado no contrato.
- Requisitos objectivos: eis como se definem:
4.1. Adequação ao uso a que os bens da mesma natureza se destinam;
4.2. Correspondência em absoluto à descrição e às qualidades da amostra ou modelo que o [fornecedor] tenha apresentado ao consumidor antes da celebração do contrato, se for o caso;
4.3. Entrega em conjunto dos acessórios, em que se incluem embalagem, instruções de instalação ou outras de que o consumidor careça para os efeitos devidos, se for o caso; e
4.4. Correspondência à quantidade e às qualidades e outras características, no que tange designadamente à durabilidade, funcionalidade, compatibilidade e segurança, habituais e expectáveis em espécimes do tipo, em particular a sua natureza e qualquer declaração pública feita pelo profissional, ou em nome deste, ou por outras pessoas em fases anteriores da cadeia de negócio, incluindo o produtor, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
- Para além dos requisitos adicionais de conformidade dos bens com elementos digitais e dos elementos pertinentes a uma correcta instalação dos bens, sempre que de tal careçam.