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O contrato é para cumprir estritamente?

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Opinião 73
Opinião 73
Por Mário Frota apDC - Direito do Consumo - Coimbra

Como diziam os canonistas, PACTA SUNT SERVANDA?

 

Os contratos são para cumprir "pereat mundum”?

Os contratos são para cumprir “ainda que cabe o mundo”?

Os contratos são para cumprir “nem que chovam picaretas"?

Os contratos são sempre para valer, uma vez celebrados, ou há modalidades que permitem se rompam, sem consequências?

No contrato de compra e venda, em geral, avultam duas obrigações a cargo de cada um dos contraentes:

  • o vendedor entrega a coisa
  • o comprador paga o preço

Os cultores do Direito Canónico (sécs. XII a XV) diziam “pacta sunt servanda”: os pactos, os acordos, os contratos, têm de ser estritamente observados. Cumpridos. Cumpridos pontualmente. Isto é, ponto por ponto. Sem qualquer defecção, sem quebras, sem omissões, sem falhas…

Os romanos diziam: “pereat mundum” (nem que acabe o mundo)…

Para usar uma expressão popular, nós dizemos, no jargão, “nem que chovam picaretas”…

Os contratos têm de ser cumpridos “nem que chovam picaretas”?

O Código Civil, que é a Casa-mãe  do direito privado comum,  diz num dos dispositivos do seu pórtico das relações jurídicas em geral (art.º 406):

.”O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.”

Pontualmente cumprido: cumprido ponto por ponto.

Coma evolução dos tempos e o surgimento de novos métodos de comerciar, passou a ser diferente nalguns dos segmentos:

  • contratos por telefone,
  • contratos por telecopiador,
  • contratos electrónicos,
  • contratos fora de estabelecimento,

contratos de consumo, afinal, que, pela sua complexidade, impõem haja um certo período de tempo para analisar, para reflectir, para ponderar acerca dos seus termos e, enfim, para o  consumidor poder decidir se fica ou não com o contrato. Já que os contratos não são presenciais.

Passados os 14 dias consecutivos, em regra facultados para o exercício do direito de retractação, se o consumidor nada disser, o contrato é eficaz, passa a produzir os seus efeitos.

No que aos contratos de consumo toca, em que de um lado está o fornecedor e do outro o consumidor: consumidor é, entre nós, em princípio, pessoa singular, pessoa física, como se usa dizer no Brasil. Que não pessoas colectivas, pessoas jurídicas. Que, salvo excepções, essas não detêm, em Portugal, como na Europa,  o estatuto de consumidores.

Há muito quem ignore (mesmo se em veste de porta-vozes de instituições de consumidores e, nessa qualidade, se apresentem em público a pretender esclarecer todos e cada um) que há "contratos a contento", cujo disciplina, cujo regime consta do Código Civil (art.ºs 923 e s).

 

Como há quem desconheça decerto a existência dos contratos “sujeitos a prova”…

 

  1. VENDA a CONTENTO: o que é? 

É a que é feita sob reserva de "a coisa agradar ao consumidor".

Mas a compra e VENDA a CONTENTO apresenta-se sob duas modalidades:

  • a primeira, como mera proposta de venda;
  • a segunda, como contrato (há já um contrato e não uma mera proposta) susceptível de resolução, vale dizer, de ao contrato se pôr termo, se a coisa não agradar ao consumidor.

1.1.VENDA a CONTENTO na primeira modalidade

No caso da "proposta de venda", a coisa deve ser facultada ao consumidor para exame.

A proposta considera-se aceita se, entregue a coisa ao consumidor, este se não pronunciar dentro do prazo da aceitação que para o efeito se estabelecer (por exemplo, 8, 10, 15 dias…).

Neste caso, não haverá pagamento porque não há contrato, mas, como se disse, uma mera proposta contratual. O que pode é haver uma qualquer entrega do valor da coisa equivalente ao preço, a título de caução.

Devolvida a coisa, restituir-se-á a caução na íntegra.

Não há cá vales, menos ainda vales com "prazos de validade", curtos ou longos, com o fito de se vender ulteriormente, pelo seu valor, uma outra coisa.

Que disso se tenha noção.

 

1.2.VENDA a CONTENTO na segunda modalidade

Se as partes estiverem de acordo sobre a resolução (a extinção do contrato) da compra e venda, isto é, sobre a faculdade de se pôr termo ao contrato no caso de a coisa "não agradar ao comprador", o vendedor pode fixar um prazo razoável para tal, se nenhum for estabelecido pelo contrato ou, no silêncio deste, pelos usos “comerciais”.

A entrega da coisa não impede que o consumidor ponha termo ao contrato.

A devolução da coisa obriga à restituição do preço, na íntegra, de imediato, sob pena de o vendedor incorrer em mora.

Neste aspecto, como há já contrato, se a ele se puser termo, terá de se operar a restituição do preço e a devolução da coisa.

Dever-se-ia legislar neste particular, a fim de se preverem coimas (sanções em dinheiro e sanções acessórias) para o caso de o vendedor se atrasar a restituir o preço ou se o quiser fazer por outro modo, seja através de vales ou por qualquer outra modalidade de pagamento. Coisa que em princípio se não admite: o consumidor entregou dinheiro, deve ser-lhe restituído o valor em numerário e não por qualquer outra forma; pagou por cartão de débito ou de crédito, deve ser feito de imediato o cancelamento do pagamento, de modo inequívoco e sem prejuízos de qualquer espécie.

 

1.3.Dúvidas sobre a modalidade da venda

Em caso de dúvida sobre a modalidade que as partes tiverem tido em mira, presume-se que é a primeira (a primeira modalidade) a adoptada: ou seja, não que tivessem escolhido um contrato de compra e venda susceptível de a ele se pôr termo se a coisa não agradar ao consumidor, mas uma mera proposta de venda.

Espécie distinta é a da VENDA sujeita a PROVA, que o Código Civil também disciplina.

 

  1. COMPRA e VENDA SUJEITA a PROVA: o que é?

 

A compra e VENDA sujeita a PROVA está regrada também no Código Civil (art.º 925).

Aplica-se o seu regime, como é curial, aos contratos de consumo, subsidiariamente.

 

O regime é o que segue:

A venda sujeita a prova considera-se feita sob a condição (suspensiva) de a coisa ser idónea para o fim a que é destinada e ter as qualidades asseguradas pelo vendedor.

 

Condição suspensiva é aquela segundo a qual as partes subordinam a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico.

Por conseguinte, se o acontecimento futuro ocorrer, estaremos perante uma condição suspensiva: o negócio jurídico produz os seus efeitos normais.

A venda sujeita a prova pode estar sujeita, porém, a uma condição resolutiva.

 

E o que é a "condição resolutiva"?

Diz-se resolutiva a condição segundo a qual as partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a extinção (a cessação, o termo, o fim...) do contrato.

Se o acontecimento se verificar, a condição será resolutiva: o negócio não produzirá os seus efeitos. (Se os sapatos não servirem ao rapaz que vem de Angola, não haverá negócio).

A coisa deve ser facultada ao comprador para prova.

A prova deve ser feita dentro do prazo e segundo a modalidade estabelecida pelo contrato ou pelos usos.

Se tanto o contrato como os usos forem omissos, observar-se-ão o prazo fixado pelo vendedor e a modalidade escolhida pelo comprador, desde que razoáveis.

Não sendo o "resultado da prova" comunicado ao vendedor antes de expirar o prazo a que se aludiu, a condição tem-se por verificada quando suspensiva (isto é, o negócio produz os seus efeitos normais, o contrato passa a ser firme) e por não verificada quando resolutiva (o mesmo se dará aqui nessa hipótese).

 

HIPÓTESES decorrentes da autonomia da vontade, da liberdade contratual

Mas há quem ignore ainda, ao que parece, o princípio da autonomia da vontade que rege no âmbito das relações jurídicas privadas, segundo o qual sob a epígrafe

 

LIBERDADE CONTRATUAL

se diz que

“1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.

2.As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”.

 

E o facto é que os contratos que fornecedores e consumidores celebram nestas circunstâncias (e é essa tanto a vontade de uns e de outros, fundidas em negócio jurídico que - se assim não fora - nem os consumidores comprariam nem os comerciantes venderiam) são-no com a faculdade de troca em um dado período de tempo (que outrora fora de oito dias, pelo recurso paralelo ao prazo do proémio do artigo 471 do Código Comercial, que, de resto, constava das notas emitidas pelos estabelecimentos, pelos comerciantes) (e hoje, por vezes, entre nós, roça os quinze dias).

Contrato que é um híbrido do contrato de venda a contento ou sujeita a prova com consequências menos gravosas para o comerciante que os verdadeiros e próprios contratos típicos, nominados, como se definem, com a faculdade de troca do bem, já que se pactua a substituição da coisa que não a sua devolução pura e simples.

E isso de há muito que faz parte também dos usos comerciais que, nessa medida, vinculam por força de lei.

A substituição da coisa (por outra, bem entendido, de imediato ou a distância, no tempo) não de trata de uma cortesia, de um mero favor, de uma condescendência, que possa ser recusada a cada instante, com uma instabilidade enorme para as partes e nefastas consequências para o comércio. Mas de algo resultante das circunstâncias que presidiram e presidem a tais contratos.

Se se pactuar, porém, um contrato típico de venda a contento ou sujeita a prova, de modo esclarecido, os efeitos jurídicos são exactamente os que ali se prevêem: a devolução da coisa e a restituição do preço. Que não a simples troca ou substituição.

Não se fale, pois, em favor nem em mera cortesia quando em dias festivos (Natal e Ano Novo, Páscoa, Dia do Pai, da Mãe, dos Namorados...) as coisas são objecto de troca.

Não se diga que os fornecedores não estão obrigados a efectuar as trocas com as consequências daí emergentes. Porque, nestes termos, estarão obrigados a tal. Sem discussões.

Mas seja qual for a modalidade do contrato, impera aqui a lei da garantia dos bens de consumo:

Em caso de desconformidade, o consumidor pode, em termos de razoabilidade e adequação, lançar mão, no período de 2 anos, dos remédios conhecidos, não sujeitos a qualquer precedência: ou envereda pela reparação da coisa ou pela sua substituição ou pela redução do preço ou por pôr termo ao contrato com a devolução da coisa e a restituição do preço. Contanto é que, no lapso de 60 dias, denuncie ao fornecedor a não conformidade da coisa (o vício, o defeito, etc…).

Tanta falta faz a informação ao consumidor!

Há um preceito na lei - na Lei-Quadro de Defesa do Consumidor - que é autêntica letra morta, como tantos mais.

Repare-se no que prescreve o n-º 2 do artigo 7.º, sob a epígrafe

 

INFORMAÇÃO EM GERAL

"O serviço público de rádio e de televisão deve reservar espaços, em termos que a lei definirá, para a promoção dos interesses e direitos do consumidor."

A Rádio e a Televisão públicas pagas pelos consumidores e contribuintes (directa e indirectamente), em Portugal, têm canais em barda (antenas e canais... a perder de vista), mas serviço público, neste particular, é algo que não cumprem.

Frouxo poder, fraco, pobre povo, que não se impõe, não exige, não reivindica! Mas paga a ineficiência, a ausência de medidas, de iniciativa, o descumprimento da lei em detrimento de si mesmo.

Enquanto os políticos nos mandarem "massivamente" para Sevilha “ver a bola” e outros nos convidam a que emigremos, bem poderemos manter a tranquilidade... que informação para o consumo, para os nossos direitos, para a cidadania, é coisa que não teremos, porque algo de supérfluo, coisa, aliás, dispensável, privilégio de poucos!

 

P.S. No Brasil, a venda a contento, a gosto (ad gustum) e a venda sujeita a prova constam dos artigos 509 a 512, como segue:

Da Venda a Contento e da Sujeita a Prova

Art. 509

A venda feita a contento do comprador entende-se realizada sob condição suspensiva, ainda que a coisa lhe tenha sido entregue; e não se reputará perfeita, enquanto o adquirente não manifestar seu agrado.

 

Art. 510

Também a venda sujeita a prova presume-se feita sob a condição suspensiva de que a coisa tenha as qualidades asseguradas pelo vendedor e seja idônea para o fim a que se destina.

 

Art. 511

Em ambos os casos, as obrigações do comprador, que recebeu, sob condição suspensiva, a coisa comprada, são as de mero comodatário, enquanto não manifeste aceitá-la.

 

Art. 512

Não havendo prazo estipulado para a declaração do comprador, o vendedor terá direito de intimá-lo,  judicial ou extrajudicialmente, para que o faça em prazo improrrogável.

PROCON RS