A função social dos contratos de consumo e a pandemia Covid-19
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Em março de 2021 foi publicada a Medida Provisória 1.036, de março de 2021 a qual alterou a Lei nº 14.046, de 24 de agosto de 2020. Ambas tratam de medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia COVID-19 nos setores de turismo e cultura. Tão logo publicadas, tanto a medida provisória quanto a lei alterada foram objeto de discussão no âmbito consumerista: se não se estaria beneficiando os fornecedores em detrimento dos consumidores.
Para analisar esta a questão, muitas podem ser as abordagens. Uma delas é a análise a partir da Função Social dos Contratos no âmbito do Código de Defesa do Consumidor. Desta feita, é necessário dar um passo ao lado para compreensão da aplicabilidade da Função Social nos contratos.
Sem regressarmos demais às legislações e aos aspectos históricos, a análise pode se dar a partir do próprio Código Civil/2002 (CCB) vigente. A atual codificação civil traz em seu núcleo mudanças de valores essenciais ao seu antecessor. Valores que não necessariamente constam no direito posto em si, mas, especialmente, na substituição do escopo patrimonialista do Código Civil anterior, para o atual centrado na pessoa humana e na dignidade da pessoa humana, assim como a superação do caráter individualista anterior, para um modelo que aliasse ao mesmo tempo a individual e coletivo, sem o afastamento de um pelo outro.
Além disso, o CCB acompanhou a tendência valorativa e principiológica da Constituição Federal de 1988 (ao mesmo tempo liberar e social), bem como o cenário jurídico e teórico que se formava. Dentre as novidades positivadas, nos interessa aqui destacar a Função Social no âmbito dos contratos (art. 421, do CCB): “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
A essência da Função Social no âmbito contratual consiste na atual concepção do Estado e na noção de Direito, que ora privilegia mais o particular, ora privilegia mais o coletivo. Mas nunca, em hipótese alguma, afasta um do outro, nem mesmo afasta este ou aquele da proteção jurídica.
Trata-se, pois, de um caminho alternativo ao liberalismo exacerbado e ao intervencionismo estatal: o personalismo. Neste caminho, protege-se a pessoa humana em particular, sem perder de vista que sua existência está inserida em um contexto social. Almeja-se, então, o bem comum, compreendido como um estado de maior beneficência e de equilíbrio contratual e de mercado, garantindo, a partir disso, o desenvolvimento da humanidade e da própria pessoa humana em si.
O Código de Defesa do Consumidor é per se uma lei de função e de justiça social. Ao facilitar a defesa dos direitos do consumidor, mais do que a defesa e proteção do destinatário do produto ou do serviço, se está protegendo, consequentemente, o próprio mercado. Não há mercado de consumo sem o resguardo do ente mais fraco nesta relação jurídica, devolvendo o fiel da balança. Entende-se que o melhor mercado é aquele que está em equilíbrio e que possibilita a necessária existência de todas as partes envolvidas e do próprio contrato de consumo em si.
Não há dúvidas de que a pandemia de COVID-19 trouxe novos desafios à vida, à saúde, ao bem-estar, ao convívio social. Também trouxe desafios às relações jurídicas, dentre elas às relações consumeristas. O justo protecionismo da figura do consumidor não pode deixar de observar fatores extraordinários como aqueles resultantes da pandemia de COVID-19, de modo que não desequilibre as relações jurídicas que, a partir do CDC, alcançaram a equidade. Aproveitando-se de uma frase de Teixeira de Freitas, as leis são feitas para as pessoas e não as pessoas para as leis.
A Lei nº 14.046, de 24 de agosto de 2020 e a Medida Provisória 1.036, de 17 de março de 2021 são disposições legais que identificaram a necessidade de garantir que os contratos de turismo e cultura, amplamente afetados pela pandemia da COVID-19 e necessidade do distanciamento social, continuassem existindo e, com ele, continuassem existindo também as partes envolvidas e, finalmente, o próprio mercado consumerista do setor de turismo e de cultura.
Ao mesmo tempo, estas disposições não deixaram de garantir direitos e proteção ao consumidor como a “remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados” ou “a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas”. Tem-se, então, que está assegurado o direito do consumidor em igualdade de condições com aquele originalmente contratado, nos termos da lei. Entendimento que está de acordo com o CDC:
“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;”
Várias podem ser as abordagens da Lei nº 14.046/ 2020 e da Medida Provisória 1.036/2021, porém ao analisar sob a ótica da Função Social dos Contratos no âmbito consumerista é possível identificar que a principal função e objetivo deve ser a proteção do particular sem o afastamento do interesse comum. Há uma norma de conduta e também há uma condicionante formal que deverá atender aos interesses particulares e coletivos. Isto é, a garantia da existência do fornecedor e do consumidor e dos seus interesses com equidade e, consequentemente, a existência do próprio mercado de consumo de turismo e cultura, amplamente afetados pela pandemia de COVID-19 e todos os aspectos que decorrem de tais contratos consumeristas, ou seja, a proteção da coletividade.